sábado, 18 de janeiro de 2014

Intermezzo

que alguém nos acuda ou tu me acudas
ou eu te acuda e junto nos acudamos
mas oh vós que não nos acudis
pedimos mais exatamente que não nos acudam.

António Aragão

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Bullying prisional

O número de reclusos nas cadeias portuguesas ultrapassou os 14.100, no final de 2013, valor mais elevado desde 1999, segundo dados provisórios da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP).
As estatísticas provisórias indicam também que 18,4 por cento dos detidos, no final de 2013, estavam em prisão preventiva e 18,5 eram estrangeiros.

Transbordo

Do transbordo dos químicos da Síria ao transbordo dos processos das comarcas a extinguir, é a retórica que ocupa o espaço mediático. Todos os dias, é mais um pouco da realidade que nos escapa. Será o futuro a conhecê-la: para alguns, uma realidade de sonho; para os outros, uma realidade sem remédio.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Por uma moral fiscal

A propósito de uma questão penal que envolve uma princesa de Espanha, escreveu André Macedo:
"Não é um debate fácil - há muita raiva dirigida à família real numa altura de grandes dificuldades -, mas é também um assunto que em Portugal não precisamos de enfrentar. Não só não temos monarquia (felizmente) como o Governo nos poupou a qualquer inquietação cívica e penal ao aprovar mais um espetacular perdão fiscal (o segundo em dez anos) que livrou os evasores e os aldrabões que enganaram o País de ser expostos e julgados - os que tiverem cometido fraudes -, além de não pagarem juros de mora e de suportarem no máximo dez euros de multa."
Um familiar, no ano passado, atrasou-se meia dúzia de dias no pagamento do imposto de circulação de um veículo com mais de vinte anos; recebeu, há dias, uma notificação para pagar uma coima de dez euros, quase tanto como o imposto que pagou.
Os estrangeiros ricos tem um tratamento fiscal diferente daquele que é dado aos portugueses que ainda por aqui andam; parece que é por causa do défice.
Nada, muito menos um ajustamento, pode justificar um direito fiscal sem moral.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Um Ministério Público recorrente (4)


Os recursos são garantias com dimensão constitucional.
O Ministério Público não pode entender a redução dessas garantias em nome de uma pretensa eficácia da justiça ou por causa de uma discutível inflação recursória.
É preciso não esquecer que é a própria volatilidade da jurisprudência que induz, significativamente, os recursos.
Não sendo o Ministério Público um contribuinte estimável dessa pretensa inflação, a verdade é que, como recorrido, tem um trabalho acrescido.
Também aqui temos os números, que são muitos, mas não temos os conteúdos.
Não se tenha medo, porém, de esclarecer que em muitas das respostas (quantas?) o Ministério Público limita-se a aderir à bondade da decisão recorrida.
A monitorização das intervenções do Ministério Público em sede de recursos é uma exigência.
Sem ela, não teremos a percepção do que se faz e daquilo que seria de fazer.
 
 
Abordando a carta temática dos recursos, dir-se-á que é natural que, em 1997, 25% dos recursos interpostos para os tribunais da Relação dissessem respeito a crimes de emissão de cheques sem cobertura, e que 12% desses recursos dissessem respeito a crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, e que, em 2003, 12% dos recursos dissessem respeito a crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e 3% a crimes de cheque sem cobertura.
É também natural que, de 1997 a 2003, sistematicamente, cerca dos 30% dos recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça fossem respeitantes a crimes de tráfico de estupefacientes.
Estas percentagens, e a sua evolução, condizem com as percentagens respeitantes aos tipos de crimes constantes das acusações deduzidas pelo Ministério Público nestes períodos e às percentagens de arguidos condenados, em 1ª instância, em penas significativas de prisão.
Não há, nessa vertente, nada de anormal.
O que seria interessante conhecer, independentemente dos crimes em causa, seriam as razões substanciais ou adjectivas dos recursos.
Os diversos relatórios anuais do Ministério Público nada esclarecem sobre esta matéria.
E não há outras abordagens sedimentadas destas questões.
Talvez no futuro, possam vir a ser criados novos parâmetros de avaliação, parâmetros que não sejam apenas numéricos, mas que nos permitam também divagar sobre a alma dos recursos.
Seria uma área em que a colaboração com as diversas Faculdades de Direito ajudaria a que a justiça repensasse alguns dos seus problemas e também alguns dos seus fantasmas.
 
 
Em 1998, num texto intitulado “O princípio da igualdade, a medida da pena e o Ministério Público”, o Dr. Simas Santos escrevia que “um dos princípios fundamentais do direito penal é o da igualdade nas decisões de justiça e o problema conexo das disparidades na aplicação das penas que tem preocupado juristas e filósofos do direito em quase todas as sociedades democrática.”
Em 2004, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, em artigo do mesmo autor e do Professor Manuel Matos, sobe a “Medida Concreta da Pena, no Supremo Tribunal de Justiça, no Tráfico de Estupefacientes”, foi escrito que “... a posição que o Ministério Público assume quanto à pena concreta é um importante preditor da sentença, as suas recomendações relevam, em geral, no resultado final. Dada a sua estrutura organizacional, o Ministério Público está em boas condições para contribuir para a disseminação de recomendações que vierem a ser elaboradas.”
A coerência na aplicação das penas tem sido uma preocupação constante em várias instâncias internacionais, sendo repetidas as orientações para que a igualdade se cumpra.
Não poderá omitir-se que no processo decisório convergem, não poucas vezes, factores exteriores que afectam essa igualdade.
As mensagens passadas pela comunicação social, a atitude do público, o contexto social local, são elementos que podem ponderar na fixação da pena.
Também factores interiores ao próprio decisor não serão despiciendos em tal ponderação.
Creio que será nesta área que o Ministério Público precisa de estruturar uma sólida estratégia de actuação no âmbito dos recursos.
A segurança e a credibilidade da justiça passam por um tratamento idêntico para idênticas situações.
Diz-nos o conhecimento do dia-a-dia judiciário que a desigualdade das penas e das medidas concretamente aplicadas é uma realidade da qual nos apercebemos com facilidade.
A aplicação da medida de inibição de conduzir é um dos exemplos mais flagrante que neste momento se poderia dar.
A amplitude das molduras penais, possibilitando a adequação da pena em conformidade com os diversos elementos que importam à sua concretização, traduz um enriquecimento na administração da justiça, mas não pode tornar-se num veículo de desigualdades.
A concretização da pena não é, nem pode ser, um exercício de subjectividades.
Naquilo que ao Ministério Público cabe como defensor da legalidade, o que também quer dizer como defensor da igualdade, a tal ampla legitimidade em matéria de recurso deverá ser um importante instrumento de igualização do arguido perante a pena.
Tendo os meios, é pena que se possam perder as oportunidades.
 
Dissertei aqui, modestamente, claro, enquanto magistrado do Ministério Público.
Gostaria de terminar falando enquanto cidadão.
Valerá a pena recorrer?
O cidadão responde com certeza que sim.
É esta evidência que todas as análises, todos os discursos e todos os propósitos legislativos deverão ter em conta.
 
 
 
Nota: ao falar-se nos recursos obrigatórios omitiu-se, deliberadamente, qualquer referência aos recursos para o Tribunal Constitucional.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Serviço público

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Um Ministério Público recorrente (3)

Em 2003, o Ministério Público, no âmbito dos inquéritos, das instruções e dos processos-crime classificados, interpôs 1460 recursos para os tribunais da Relação: 272 no Distrito Judicial de Coimbra; 238 no Distrito Judicial de Évora; 489 no Distrito Judicial de Lisboa; e 461 no Distrito Judicial do Porto.
Tendo em conta que, naquele ano e no mesmo âmbito, foram interpostos 9287 recursos, constata-se que a percentagem dos que couberam ao Ministério Público corresponde a 15,7% do total.
Daqui decorre que o Ministério Público foi recorrido em 84,3% dos aludidos recursos.
Se consultarmos os elementos estatísticos referentes a 2001, verifica-se que o Ministério Público interpôs 1491 recursos, mais 31 do que em 2003.
Nesse ano, nos tribunais da Relação, deram entrada 6876 recursos penais, pelo que se pode concluir que os interpostos pelo Ministério Público corresponderam a 21,6% do total, sendo recorrido em 78,4%.
Se recuarmos um pouco mais e consultarmos os elementos estatísticos referentes a 1996, verifica-se que o Ministério Público interpôs 1938 recursos, mais 478 (+32,7%) do que em 2003.
Nesse ano, nos tribunais da Relação, deram entrada 5151 recursos penais, pelo que se pode deduzir que os interpostos pelo Ministério Público corresponderam a 36,7% do total, sendo recorrido em 63,3%.
Não vos querendo cansar com outras enumerações, deverá acentuar-se, no entanto, que, havendo um aumento constante dos recursos penais interpostos, há uma diminuição sistemática dos que são interpostos pelo Ministério Público: em números globais e, obviamente, em termos percentuais.
Cada vez menos recorrente, o Ministério Público vai tornando-se cada vez mais recorrido.
As razões para este desencontro aritmético não serão fáceis de encontrar.
Poderá dizer-se que a credibilidade das decisões judiciais recorríveis aumentou junto dos magistrados do Ministério Público. E digo-o sem ironia.
Poderá também dizer-se que o interesse ou a disponibilidade dos magistrados do Ministério Público em recorrer tem diminuído.
Poderá ainda adiantar-se que faltará aos magistrados do Ministério Público o estímulo para o desenvolvimento de uma tarefa que exige um particular empenho.
Sejam quais forem as razões, a verdade é que devem tornar-se preocupações.
 
Tendo a contabilidade, não temos os conteúdos.
De que tipo de decisões recorreu? Com que argumentos? Encontra-se alguma articulação entre os diversos magistrados no que diz respeito à actividade recorrente do Ministério Público?
O que se possa dizer é empírico.
Correndo esse risco, não será ousado afirmar que essa actividade não foi sistemática nem obedeceu a qualquer razão de estratégia criminal.
Se analisarmos o mapa dos recursos por comarcas e círculos, encontram-se desvios quantitativos que só poderão ser justificados, à falta de outros elementos, pela maior ou menor apetência dos respectivos magistrados para a interposição dos recursos.
A título de exemplo:
No Círculo Judicial de Seia, em 2003, para 1384 processos comuns, sumários e sumaríssimos iniciados, foram interpostos 15 recursos, o que corresponde a 1,08%.
No Círculo Judicial de Aveiro, para 2262 processos iniciados, foram interpostos 19 recursos, o que corresponde a 0,83%.
Ou seja: havendo uma variação, para mais, de 63,4% nos processos, verificou-se apenas uma variação de 33,3% nos recursos.
Muito sumariamente, no que tange aos recursos interpostos pelo Ministério Público nos tribunais da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, segundo os elementos que pude recolher, constatou-se que, em 2003, em Coimbra, foi interposto 1, em Évora, 4, no Porto, 6.
Não foram muito diferentes os números em outros períodos.
Também aqui o Ministério Público foi um recorrente mitigado, mas, e digo-o outra vez sem ironia, não deixou de ser um recorrido esforçado.
E, no entanto, é preciso realçá-lo, em 385 recursos interpostos pelo Ministério Público, na 1ª Instância, que foram julgados em 2003, verificou-se que 240 (62,3%) tiveram provimento e 145 (37,6%) estiveram sujeitos ao insucesso.
Mas se nos reportarmos a 1992, em 1452 recursos interpostos pelo Ministério Público e julgados nesse ano, 971 (66,8%) obtiveram provimento e 481 (33,1%) não o obtiveram.


Um Ministério Público recorrente (2)

O artigo 401º, nº 1, alínea a), do actual Código de Processo Penal, estabelece que o Ministério Público tem legitimidade para recorrer de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido.
Não se trata de uma disposição inovadora.
O Código de Processo Penal de 1929, no seu artigo 647º, 1º, dizia o mesmo, ainda que com a diferença ligeira de se reportar ao exclusivo interesse da defesa.
Em ambas as disposições, o poder concedido ao Ministério Público em matéria de recursos penais é o mais amplo possível.
É natural que o seja, já que concedido a uma magistratura que se deve reger por opções de estrita legalidade.
Funcionará como uma válvula de segurança do sistema, permitindo que, para além do imediatismo dos interesses em causa, razões de harmonia e concertação judiciária possam ser levados à consideração de uma outra instância.
Mas o que fazer com tal poder? Como o exercer com ponderação e eficácia?
No antigamente, nesses anos de desconfianças, o próprio Código, e outra legislação, impunham ao Ministério Público que, em certas circunstâncias e relativamente a certos crimes, interpusesse recursos.
Eram os recursos obrigatórios, área especialmente visada na avaliação funcional dos magistrados de então.
Assim, o Ministério Público tinha a obrigação de recorrer –
Das decisões que não declarassem o impedimento do juiz, nos casos em que o mesmo lhe tivesse sido oposto (§§ 1ºs dos artigos 647º e 110º);
Das sentenças finais nos processos em que o juiz, agente do Ministério Público ou escrivão fossem ofendidos, por actos cometidos na sua presença e no exercício das suas funções, ou fora delas, mas por causa das mesmas (artigos 647º, § 1º e 116º);
Das decisões que aplicassem penas maiores fixas (§§ 1º do artigo 647º, único do artigo 473 e artigo 526º);
Das decisões proferidas contra a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em tribunal pleno (artigos 647º, § 1º e 670º);
Sempre que o superior hierárquico lho ordenasse, mesmo que se houvesse conformado com a decisão (§ 2º do artigo 647º);
Das decisões proferidas contra o Estado, sempre que não houvesse ordem superior, escrita, em contrário (artigo 230º, nº 1, alínea f), do Estatuto Judiciário);
Das decisões absolutórias em processo de transgressão por abertura de poços dos concelhos de Lisboa, Oeiras, Cascais, Sintra e Loures (artigo 12º do Decreto-Lei nº 30448, de 18 de Maio de 1940).
Mas entendia-se, então, que não chegavam estas imposições que resultavam da lei.
Por via hierárquica, para além da possibilidade, como vimos, de ser ordenada a interposição de recurso em cada caso individualmente considerado, estabeleceram-se, de uma forma genérica, recursos obrigatórios.
Estar-se-ia, aqui, perante uma forma de direcção institucional em que se privilegiaria a conjuntura.
Por exemplo:
Das decisões absolutórias em processos por exercício da indústria de agentes de emigração ou de passagens e passaportes sem a necessária autorização (imposição de 1923);
Das decisões absolutórias proferidas nos processos por crimes de emigração clandestina, designadamente de aliciação, engajamento ou colaboração na obtenção de documentos -contratos de trabalho, cartas de chamada ou equivalentes- para emigração (imposição de 1959);
Das decisões que não aceitassem a definição de açaimo exposta nas Instruções da Direcção-Geral dos Serviços Pecuários para a execução do Decreto-Lei nº 29441 (imposição de 1940).
Para além destes recursos de interposição obrigatória, por força da lei ou de determinação hierárquica, a hierarquia definia algumas situações em que aconselhava a interposição de recursos.
Era aconselhada a interposição de recurso:
Sempre que estivesse em causa o prestígio da autoridade (despacho do Procurador-Geral da República de 14 de Fevereiro de 1949);
Das sentenças proferidas em processo correccional pelo juiz substituto (Circular de 9 de Março de 1935);
Sempre que se discutisse a necessidade de licença para a realização de quaisquer obras ou trabalhos a que se referia o artigo 282º do Regulamento dos Serviços Hidráulicos, de 19 de Dezembro de 1892 (Circular de 26 de Fevereiro de 1948);
Nos processos pelo uso e detenção de armas proibidas quando se declarasse que a competência para elas não pertencia aos tribunais comuns (Circular de 23 de Julho de 1949).
Não tenho elementos que me permitam falar sobre o modo como esse aconselhamento se repercutiria na actividade dos magistrados.
Mas face à expressividade da hierarquia então existente, aliás adequada ao contexto político da época, será legítimo admitir que tivesse sido interposto um número significativo de recursos em resultado dessas orientações.
Justificando esta solução legislativa, nomeadamente a dos recursos obrigatórios, escrevia, em 1934, Luís Osório:
O Ministério Público não é propriamente um acusador, mas um representante da sociedade que tem interesse em que a justiça seja feita, e fazer justiça pode ser absolver ou baixar a pena. Assim, o recurso pode ser interposto a favor do réu, o Ministério Público deve recorrer de certas decisões em que é preciso um exame mais cuidadoso do processo; o ter-se conformado com a decisão não o impede de recorrer.
É curioso anotar esta associação entre a obrigatoriedade do recurso e a necessidade de uma análise mais cuidada de certas matérias, o que nos levaria para considerações que estão fora do propósito deste texto.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 1957, estabeleceu que aos recursos interpostos por dever de ofício (§ 1º do artigo 647º e § único do artigo 473º do Código de Processo Penal) não era aplicável o disposto no artigo 690º do Código de Processo Civil, ou seja, interposto o recurso obrigatório, o Ministério Público não estava obrigado a apresentar alegações (Bol., 63-383), aliás na sequência de um outro acórdão do mesmo Tribunal, de 21 de Novembro de 1941 (Revista de Legislação, ano 74º, pág. 381, e ano 73º, pág. 296).
Sustentava-se que, sendo o recurso interposto por imperativo da lei e não por discordância com o decidido, nunca seria possível exigir ao recorrente invocar razões para a alteração da decisão em recurso.
Os tempos mudaram.
Exceptuando o disposto no artigo 3º, nº 1, alínea o), do Estatuto do Ministério Público, que estabelece que deve ser interposto recurso “sempre que a decisão seja efeito de concluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa”, e o disposto no artigo 446º, nº 1, do Código de Processo Penal, que estatui que “o Ministério Público recorre obrigatoriamente de quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso sempre admissível”, a lei não determina a obrigatoriedade de outros recursos.
Seria interessante analisar, em outro momento, em que medida a autonomia do Ministério Público não se compagina com essa obrigatoriedade legal ou com um seu possível alargamento.
Por outro lado, também não existem determinações hierárquicas que, de um modo genérico, imponham a interposição de recursos.
Nem por aconselhamento foram dadas orientações ou suscitadas interrogações.
Escreveu, o outra vez citado Luís Osório, que “o Ministério Público é a parte que maior poder de recurso tem.
Um poder assim coloca sérias questões relativamente ao seu exercício, ou melhor, à gestão do seu exercício.
Num estado de abandono legal e hierárquico, cabe a cada magistrado o risco da dispersão funcional nesta matéria.
Uma política criminal, e tanto se tem falado dela, passa, necessariamente, por uma prévia definição de algumas linhas sobre as situações em que o Ministério Público deveria ter uma particular atenção para o recurso penal.
Apesar desse poder, os elementos estatísticos disponibilizados apontam para um exercício relativamente mitigado.

 
 
Nota: de 2005

domingo, 12 de janeiro de 2014

Um Ministério Público recorrente

Os recursos são remédios. Umas vezes, eficazes; outras, nem por isso. Se a justiça fosse uma aritmética, uma prova dos nove seria suficiente para aquilatar da bondade das decisões. Mas a justiça é um discurso, muitas vezes redundante, que precisa de outros discursos, também eles muitas vezes redundantes, que credibilizem os primeiros. Se me permitem uma ideia da justiça próxima daquela que poderia ter um tal Josef K., ouso dizer, ainda que o não deva sustentar, que o trânsito em julgado de qualquer decisão traduz a natureza da humanidade que somos: incerta e efémera. Nessa ideia, ou melhor, nesse sentido que estará entre a ética e a estética, a justiça seria um recurso em contínuo em busca, não de um tempo perdido, mas de uma verdade impossivelmente definitiva. Muitos dos equívocos, aparentes ou reais, que a justiça gera, resultam do esquecimento da sua natureza: ela é prosaica e terrena. O que nos vão vendendo é a ilusão de uma justiça fantasiada de absolutos e de alguns absurdos. É aí que se inscreve a banalização dos recursos, dos recursos terrenos, tema ou temor que hoje aqui nos traz.
Daqui a muitos anos, quando for outro o paradigma judiciário, o historiador desse tempo não deixará de ficar surpreendido com a extensão das atribuições do Ministério Público na área dos recursos, nomeadamente na área dos recursos penais. E se se ficar pela letra da lei, pelo seu conteúdo e pelo seu propósito, não deixará de escrever que o legislador desse passado já longínquo teria feito do Ministério Público um recorrente compulsivo. Mas se avançar na análise histórica, na análise dos números e dos casos, o historiador concluirá, com certeza novamente surpreendido, que o Ministério Público foi, apesar da lei, um tímido e discreto recorrente. Um recorrente que teria utilizado, sem audácia e sem estratégia, essa legitimidade, quem sabe se excessiva, para recorrer disto e daquilo, aqui e acolá. Provavelmente, o meio mais eficaz para paralisar as instituições, e continuo ainda a dar voz ao meu imaginado historiador, será enriquecê-las com competências que, parecendo dádivas, apenas robustecem as inércias. 

 *Em 2005, palestrante

sábado, 11 de janeiro de 2014

Emergência ideológica

O que deveria ter sido um momento de reflexão pausada sobre o segredo de justiça, tornou-se numa fragilidade para o Ministério Público. Propor o aumento das penas e a utilização de escutas radica-se numa emergência ideológica e não numa análise funcional do problema. Salvo o devido respeito, como é de justiça dizer-se, não cabe ao Ministério Público ser porta-voz dessa emergência.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Escutas preventivas

Pôr os jornalistas sob escuta? Porque não também os magistrados? E os advogados? E os polícias? E os peritos? E tutti quanti?

Das escutas já o escrevi aqui várias vezes. Continua um tema em que a opacidade parece ser a alma do negócio.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Um mito urbano

Ontem, pela televisão, vi que, ao longo das ruas, havia pessoas que choravam: não pelo morto que passava, mas por elas. O povo anónimo, num dia de chuva, tem essa coragem, a de chorar, como se fosse a sua esperança difusa. Promovido, à saciedade, no estádio dos media, foi ele o herói de si mesmo.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Por uma conduta leal

In the justice system, prosecutors have the power to decide what criminal charges to bring, and since 97 percent of cases are resolved without a trial, those decisions are almost always the most important factor in the outcome. That is why it is so important for prosecutors to play fair, not just to win. This obligation is embodied in the Supreme Court’s 1963 holding in Brady v. Maryland, which required prosecutors to provide the defense with any exculpatory evidence that could materially affect a verdict or sentence. (The New York Times)

Numa altura em que o Ministério Público, em Portugal, começa a fazer uma utilização significativa dos meios de consenso na resolução dos litígios penais, a reflexão sobre o to play fair passou a ser uma exigência.

Leituras

"O problema é fazê-los parar."

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Calibremos, pois

Cristiano Ronaldo vai ser medalhado. Sem ele, Portugal, no mundo, não seria o mesmo. É um emigrante de sucesso. Claro que o sucesso de um emigrante é historicamente sempre provisório, a não ser que seja o próprio país a emigrar. Já poucos se lembram do Conde de Ferreira, um outro emigrante de sucesso. Mas quem o lembra, não o lembra senão pelas escolas ou pelo hospital para alienados que fez construir.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

GPS

Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de novembro de 2013, que pode ser consultado aqui, e de se reproduz adiante o sumário, as dúvidas existentes sobre a utilização dos GPSs na gestão dos veículos das empresas terão sido ultrapassadas.
 
Sumário
1. O conceito de «meios de vigilância à distância» expresso no n.º 1 do art. 20.º do Código do Trabalho de 2009 está reportado aos equipamentos que traduzam formas de captação à distância de imagem, som ou som e imagem que permitam identificar pessoas e detetar o que fazem, como é o caso, entre outros, de câmaras de vídeo, equipamento audiovisual, microfones dissimulados ou mecanismos de escuta e registo telefónico.
2. O dispositivo de GPS instalado, pelo empregador, em veículo automóvel utilizado pelo seu trabalhador no exercício das respetivas funções, não pode ser qualificado como meio de vigilância à distância no local de trabalho, nos termos definidos no referido preceito legal, porquanto apenas permite a localização do veículo em tempo real, referenciando-o em determinado espaço geográfico, não permitindo saber o que faz o respetivo condutor.
3. O poder de direção do empregador, enquanto realidade naturalmente inerente à prestação de trabalho e à liberdade de empresa, inclui os poderes de vigilância e controle, os quais, têm, no entanto, de se conciliar com os princípios de cariz garantístico que visam salvaguardar a individualidade dos trabalhadores e conformar o sentido da ordenação jurídica das relações de trabalho em função dos valores jurídico-constitucionais.
4. Encontrando-se o GPS instalado numa viatura exclusivamente afeta às necessidades do serviço, não permitindo a captação ou registo de imagem ou som, o seu uso não ofende os direitos de personalidade do trabalhador, nomeadamente a reserva da intimidade da sua vida privada e familiar.
5. Existe justa causa para o despedimento do trabalhador quando está demonstrado que o mesmo, exercendo as funções de motorista de veículos de transporte de mercadorias perigosas, à revelia da empregadora, por 18 vezes, no período de 3 meses, conduziu o referido veículo para localidades fora do percurso determinado para o transporte da mercadoria desde o local de recolha ao local de entrega da mesma, o que se traduziu, não só, no acréscimo das distâncias percorridas e do período de tempo para o efeito despendido, suportados pela empregadora, mas, também, no aumento dos riscos derivados da circulação do veículo com combustível.