sábado, 12 de setembro de 2009

A corrupção ou as sombras dela


António Vieira, nos Sermões, clamou que, e passo a citar, “chegou a corrupção dos costumes a tal estado … que os poderosos têm ódio a quem repreende as suas injustiças.”
E Raul Brandão, em Os Pescadores, não deixa de anotar: “Em Mira o lar é sagrado. É-o em todas as povoações de costa portuguesa que ficam longe dos centros corruptores.”
Corrupção, costumes, poder, são realidades que convivem através da história e que se inscrevem numa lógica de aperfeiçoamento moral e político que continua nos dias de hoje.
Todos os recentes documentos internacionais que reflectem este assunto, não ignoram a necessidade de reforçar a ética dos procedimentos nem de melhorar os mecanismos do exercício do poder democrático.
No artigo 8º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção estatui-se que cada Estado deve encorajar a integridade, a honestidade e a responsabilidade dos seus agentes públicos e que a sua actuação deve reger-se por normas de conduta para um exercício correcto, probo e adequado às suas funções.
Por outro lado, no artigo 10º, apela-se à transparência da administração pública, nomeadamente no que diz respeito ao seu processo de decisão.
Ninguém desvalorizará a importância destes propósitos.
Mas numa sociedade global, em que os intercâmbios económicos e financeiros são cada vez mais abstractos e longínquos e as decisões das entidades públicas cada vez mais complexas e mais abrangentes, a verdade é que a corrupção é cada vez mais um crime que se enquadra numa actividade criminosa mais ampla, mais sofisticada, mais interdependente da prática de outros crimes.
O que está em causa é a segurança nacional e internacional, o controlo das armas, a redução da pobreza, a justiça, a democracia e os direitos do homem, o comércio justo, a degradação social.
James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, estabeleceu como prioridade a luta contra o suborno na sua própria instituição, tal a danosidade que essa conduta provoca.
Os valores em causa são de tal modo significativos que só podem ser geridos no âmbito de estruturas criminosas muito bem organizadas.
O Estado social não escapa a essa mesma tentação e é factor propício ao desenvolvimento da corrupção.
Seria incorrecto associarmos este fenómeno apenas a sociedades não democráticas, a Estados com debilidades estruturais, ou a estruturas societárias que escapam aos nossos padrões organizativos.
Por isso mesmo, é hoje redutor falar-se apenas em corrupção esquecendo todo o contexto criminal em que esta se insere.
A corrupção conjuga-se com o tráfico de pessoas, com o tráfico de armas, com o tráfico de estupefacientes, com o contrabando, com a cartelização, com os ilícitos decorrentes dos negócios dos valores mobiliários, com os crimes ambientais, com a fraude fiscal, enfim, com todos aqueles tipos de actividade ilícita que possibilitam elevados benefícios.
Há um crime organizado que não pode nem deve deixar de ser analisado e compreendido na interacção das suas diversas vertentes.
Aliás, é o que resulta da referida Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.
Muito do que aí se estabelece tem um âmbito muito mais vasto do que o conceito estrito de corrupção e aplica-se ou tem a ver com essa criminalidade, a organizada.
Em passagem breve, referir-se-á:
No artigo 17º, trata-se da subtracção ou uso ilícito, por um agente público, de bens ou valores públicos, ou de bens ou valores privados de que poderá dispor por razão das suas funções.
No artigo 18º, estabelecem-se os elementos que deverão integrar o crime de tráfico de influências.
No artigo 19º, define-se o que se deve entender, para fins criminais, por abuso de funções.
No artigo 22º, previne-se a subtracção de bens ou valores por quem dirige uma entidade privada ou nela trabalha e que lhe estão entregues pelo exercício das funções que aí desempenha.
No artigo 23º, propõem-se as medidas que levem à criminalização do branqueamento do produto do crime.
No artigo 25º, estabelecem-se regras relativas à responsabilização do entrave ao bom funcionamento da justiça.
No artigo 31º, discriminam-se as medidas destinadas à confiscação dos bens utilizados como meios ou provenientes dos produtos do crime.
No artigo 32º, realça-se a protecção das testemunhas, dos peritos e das vítimas.
Do que sumariamente transcrevi, parece-me perceptível que a realidade social corrupção, necessariamente mais ampla que a sua ficção penal, exige uma aproximação analítica diversificada.
No Programa de Haia, onde se estabelecem as dez prioridades europeias, entre 2005 e 2010, na área JAI (Justiça e Administração Interna), a política anti-corrupção inscreve-se no seu item 8 , o qual tem por epígrafe Combatendo o crime organizado: prevenção, investigação e cooperação.
Só a visão global do crime organizado, só uma estratégia global de combate ao crime organizado poderá traduzir-se numa luta eficaz contra a corrupção.
A realidade criminal complexa que nos rodeia não pode ser fatiada e combatida desarticuladamente.
Do ponto de vista policial, do ponto de vista do seu desempenho, a prioridade é o combate ao crime organizado, nele cabendo, naturalmente, a corrupção.
É idêntica a perspectiva do Conselho da Europa.
No seu Relatório de 2005 sobre o crime organizado dedica um capítulo temático à questão da criminalidade económica que considera revestir uma particular importância num contexto de globalização, nela se inscrevendo, naturalmente, a corrupção.
A criminalidade económica e a criminalidade organizada têm inúmeras características em comum.
Obedecem a lógicas similares, fundadas na procura do lucro e na exploração das oportunidades oferecidas pela mundialização.
A distinção que muitas vezes é feita entre criminalidade económica, ou criminalidade de colarinho branco, e criminalidade organizada, ou criminalidade de colarinho negro, é cada vez mais artificial.
Os criminosos que integram estruturas organizadas operam como homens comuns de negócios, analisando os custos, as vantagens e os riscos.
A expansão da criminalidade económica e organizada, a necessidade de integração dos lucros na economia legal, conduz à contaminação dos mercados legais, à eventual fusão dos mecanismos legais e ilegais de funcionamento dos mercados.
O Conselho da Europa reconhece que a corrupção é um tema chave na Europa e um factor muito importante no favorecimento da criminalidade organizada e económica.
A verificação que um número crescente de infracções económicas resulta de tentativas dos criminosos exercerem uma influência indevida sobre quem tem poderes de decisão política, leva a que as instituições internacionais se interessem cada vez mais pelo que poderíamos chamar “finanças políticas”, aqui integrando o financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.
Voltando à Convenção das Nações Unidas, onde se reconhece a particular dificuldade de investigação do crime de corrupção, e dos outros crimes que o documento assinala, importará referir que o artigo 50º, que tem por epígrafe Técnicas de inquérito especiais, aponta expressamente para a utilização de entregas controladas, vigilâncias electrónicas e operações de infiltração, mecanismos de investigação próprios e adequados à investigação da criminalidade organizada.
Por outro lado, também no Programa de Haia, já referido, corrupção e criminalidade financeira, esta no seu sentido mais amplo, aparecem numa complementaridade investigativa.
Creio que não poderemos chegar a outra conclusão: para um crime global, um combate global.
Mas não deveremos esquecer a relevância da educação e da cidadania neste combate.
Numa consulta electrónica levada a cabo pela Transparency International, 90% das respostas salientam que a educação anti-corrupção é muito importante no combate à corrupção.
Óscar Árias, antigo Presidente da Costa Rica e Prémio Nobel, declarou que, e cito, “falamos muito da mundialização da corrupção, mas é necessário não esquecer quão importante é a procura do povo para escolher governantes honestos.”
Por isso mesmo, os conceitos de boa gestão dos assuntos públicos, da integridade, da transparência e da responsabilidade são uma constante nos diversos instrumentos internacionais sobre a matéria, devem ser um forte complemento da nossa educação.

Minhas Senhoras e meus Senhores
Se esta intervenção devesse ter um título, ele seria singelo: A corrupção ou as sombras dela.
O que conhecemos da corrupção são, a maioria das vezes, as suas sombras, os seus reflexos, os seus resultados.
O aperfeiçoamento das técnicas de investigação tem de corresponder à sofisticação das práticas corruptoras.
O conhecimento das estruturas sociais onde essas práticas proliferam, é uma exigência.
Os mecanismos políticos e administrativos que a facilitam precisam de ser desarticulados.
É uma luta da polícia, é uma luta da sociedade, mas também não pode deixar de ser uma luta política.
A Polícia Judiciária tem dado passos seguros na investigação articulada com outros entidades, porque só assim se pode compreender um combate global.
Queremos aprofundar e alargar esse trabalho articulado.
Queremos melhorar a gestão da informação que nos é disponibilizada e dar-lhe um sentido iminentemente operacional.
A definição de estratégias de actuação com o Ministério Público, dentro das prioridades criminais que vierem a ser definidas, é uma exigência legal e uma necessidade óbvia.
Por outro lado, apostamos numa reforma estrutural que dê à Polícia Judiciária maior consistência e unidade no combate à corrupção, esta entendida no seu amplo espectro de cumplicidades criminais.

Discursata feita em 2007, na Assembleia da República, para memória futura. Retirei os cumprimentos, obviamente.